terça-feira, 14 de abril de 2009

a menina e o monstro

(tudo o que eu queria te dizer agora)



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Acho que fui muito dura com você. Mas perdão tem hora para se pedir e já se passou tempo demais. Seria esquisito trazer isso à tona agora. E eu nem sei se é o caso de perdão, veja bem, esta palavra robusta e forte, valentona: bota a gente de joelhos. Não sei se eu quero isso com você, não. Mesmo que tu me tenha de chicote no lombo, na minha cabeça eu ainda estarei resistindo, eu estarei com o rosto duro de afronta. Você sabe. Você me sabe.

Se servir o já batido desculpe, então enfia no pacote minhas desculpas pela distância. Por não ter atendido o telefone. Por ter fingido que os teus e-mails ficaram no meio de tantos outros, mais urgentes, e acabei não vendo. Ou esquecendo de responder. Eu não esqueci, não. Eu vi. Só não respondi porque não sei mais falar de mim. Como falávamos. Tão ricamente. Secou a fonte do eu. Daqui não sai mais nada digno de nota. Então o jeito é falar dos outros — quanto mais distantes, melhor. Vamos discutir os povos estranhos, o que eles têm que a gente não têm. Eu falo do mundo para não ter de falar de mim e aí ficar aquele silêncio contrangedor que você sabe que eu detesto. Nunca sei o que fazer com ele.

Lembra? Que anos atrás eu disse… acho que era tarde da noite… que havia tanto dentro de mim que o ronronar maluco da cidade silenciava? Eu reclamava por estar distraída com tantos ruídos externos, enquanto, aqui dentro, havia ruídos muito mais importantes… e belos!… para serem desemaranhados e reafinados. Você lembra?

Mas hoje, quando acordo no meio da noite porque o sono acabou (ando descansada até demais nesses últimos dias), vasculho as minhas gavetas e elas estão limpas. Escapuliu todo o sentimento que saracoteava dentro das minhas entranhas. Hoje é só silêncio — e a calmaria é tanta que dá tédio. É um tédio que, te confesso, nunca havia sentido antes. Acho que é isso que chamam felicidade? Também não sei o que fazer com ela.

Lembra também daquele dia em que você disse que eu precisei sofrer que nem uma cadela para me tornar interessante? Você dizia que as minhas melhores frases tratavam das minhas piores porradas. Aquelas frases que você até anotava no seu caderninho, pedindo para eu segurar o cachimbo. Você dizia… lembra?… que eu só comecei a fazer piada boa depois que a vida se encarregou de nocautear a menininha. Aquela menininha tola. Aquela. Que, naquela noite, deixou de resistir: afrouxou a cara de afronta e quase caiu no chão sujo, sujo do vômito e da porra dos outros, não fossem aquelas duas moças que me reergueram e eu não me lembro mais da cara. Segundo você, eu só me tornei interessante depois daquilo. Depois que a vida desvirginou meus olhos. E hoje eu acho até que você estava certo. Mas puta merda, querido, que saudades que eu tenho daquela menina. Se pudesse voltar atrás, eu não sei o que escolheria, não. Entre ser interessante e ser inteira, eu não sei.

(O que sou hoje é um bicho que não é uma nem outra. Eu não sei o que dizer quando me indago sobre identidade. Acho que, quando a vida me deu aquele soco no meio do estômago, a identidade voou junto com o sangue que escapuliu pela boca. Sei lá. A menininha era tola, mas eu a conhecia. O que veio depois era um monstro estranho que você, ao me conhecer, se encarregou de alimentar [ei, e eu te pergunto: quão interessante um monstro precisa ser para que nos esqueçamos de que é um monstro?]. Agora, sem você nem a menininha nem o monstro nem os ruídos, só as gavetas vazias e o silêncio da calada da noite, eu não sei mais o que desejar. Não sei que perguntas fazer. Não sei mais o que estou procurando. E, embora eu queira que não seja assim para sempre, também não nego que é mais confortável. É fácil conviver com o tédio porque ele apenas é).

Hoje, se a gente combinar mesmo de se encontrar (eu espero que não, você sabe que eu vou tentar arranjar uma desculpa esfarrapada qualquer, maldita hora em que eu deixei você saber que meu passatempo favorito é dizer às pessoas que surgiu um imprevisto de última hora… nunca especificado, nunca — que as coisas mais graves a gente tem sempre vergonha de contar… e aí desmarcar tudo, dizer para irem sem mim, mas divirtam-se), se eu não lhe der o cano, aposto que você fará um elogio. Você vai notar. Não vai conseguir ficar calado. Sobre a calmaria.

Você vai dizer que eu sou forte. Que eu sobrevivi. E aí eu vou ser obrigada a dizer que não. Que sobreviver não é nem nunca pode ser conjugado no passado. Todo dia eu tenho de me reerguer como fizeram aquelas duas garotas das quais eu não me lembro nem do rosto e a quem sequer tive tempo (ou forças) de agradecer. As gavetas estão vazias hoje mas eu me lembro bem do que já houve dentro delas.

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daqui

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