segunda-feira, 10 de maio de 2010

do amor ideal

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"Esse amor era incomumente completo. Irina amava tudo em Lawrence, tal como ele era - inclusive sua rispidez com as outras pessoas, sua má postura, sua dependência da televisão, um vazio pernicioso que ela jamais conseguira preencher em todos aqueles anos de vida em comum. Ao mesmo tempo, sentia um relaxamento. O amor romântico é uma corda esticada e, em certos aspectos, uma luta, pois sempre nos debatemos, se não contra a pessoa amada em si, contra nossa própria escravização indigna a outro ser humano. Era possível que houvesse um tipo de amor diferente, uma vez empatado o cabo-de-guerra - um amor solto, generoso e seguro, um amor relaxante, tranquilo e descontraído, como quem se reclina com um copo de vodca-tônica e põe os pés para cima da balaústrada da varanda, depois de uma exaustiva tarde de esportes. Mas era igualmente possível que, enfim acolhendo Lawrence em sua totalidade, não mais batalhando contra as muitas deficiências que gostaria de corrigir, não mais se enfurecendo com os numerosos aspectos em que ele frustrava o ideal, Irina houvesse desistido dele."



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Lionel Shriver
O mundo pós-aniversário
o último trecho, prometo.



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das coisas que são difíceis de admitir

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"-Não sei se algum dia admiti isso para você com franqueza. Sempre quis que você me achasse ambiciosa... sabe, uma profissional séria e tudo mais. E eu gosto... ou gostava, e suponho que voltarei a gostar do que faço, e de tentar fazê-lo bem feito. Mas a verdade é que só existe uma coisa que eu realmente sempre quis, mais do que qualquer outra coisa, e não é o sucesso profissional. Eu poderia viver sem ele. A única coisa sem a qual não posso viver é um homem. Isto deve parecer pavoroso, dito assim, às claras! Mas, correndo o risco de parecer idiota, eu queria um amor verdadeiro e duradouro. Acho que até envelhecer seria interessante, desde que eu pudesse fazê-lo ao lado de outra pessoa. Eu queria um companheiro. Talvez não até o último suspiro; alguém sempre tem que ir na frente. Mas pelo menos até os setenta e tantos anos, sabe? A questão é que... eu achava que essa era uma ambição modesta. Achava que, almejando tão pouco, eu teria uma chance de conseguir o que queria. E agora, mesmo com um objetivo tão mísero, fracassei. Eu suporto ficar sozinha, não me entenda mal. Fica tudo bem. Mas não achei que estivesse pedindo tanto, Lawrence, especialmente considerando que eu me dispunha a fazer um pacto com o universo, sacrificando tudo em nome disso: dinheiro, fama, prestígio, a salvação do mundo, a descoberta da cura do câncer. Por isso, eu me sinto lesada. Tudo o que eu pedia era para caminhar de mãos dadas rumo ao pôr do sol, e até isso me foi negado."



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Lionel Shriver
ainda


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"Curiosamente, as lembranças dela eram mais consoladoras do que dolorosas. O que não fazia sentido. Ele sabia que devia estar com raiva. Sabia que provavelmente estava. Sabia que ficaria melhor se a odiasse, não necessariamente muito, mas um pouquinho. Mas não queria odiá-la, e isso não vinha de uma forma natural, e era provável que não adiantasse mesmo. ela era uma perfeita idiota, e isso era uma pena. mas idiota não era o mesmo que má. talvez essa fosse uma distinção que ele deveria ter admitido algum tempo antes.
Não queria pensar assim - no que estava sentindo. Preferia pensar no que fazia e no que iria fazer. Mas Irina não percebia que não pensar jno que se sentia não era igual a não sentir nada. Ele não gostava de ficar sem jeito, e tinha suposto que ela compreendia. Mas parecia que não. Ou talvez ela simplesmente não desse a mínima para o que ele sentia, embora lhe fosse difícil acreditar nisso. De qualquer modo, quanto a essa merda de sentir, agora só havia uma regra, que ele se impunha com disciplina militar: estava livre para pensar em qualquer outra coisa que quisesse. Mas era absolutamente proibido imaginar que ela pudesse voltar."


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Lionel Shriver
O mundo pós-aniversário



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quinta-feira, 6 de maio de 2010

das mudanças do gostar

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"Por trás dessa sua irritação justificada, entretanto, espreitava uma exasperação menos defensável: pelo fato de Lawrence, apesar de não ser baixo, não ser muito alto. De Lawrence, mesmo estando em forma, não ter uma silhueta mais fina, porque não havia abdominais que conseguissem afinar uma certa grossura de seu tronco, já que esse era o feitio de seu corpo. De Lawrence, apesar de bem-sucedido em sua área, não ter uma ocupação exótica que mantivesse magnificamente abertas as cozinhas dos restaurantes, em qualquer horário, e que o instalasse em hotéis chiques. De Lawrence, apesar de virtuoso, não exalar um perfume inebriante de fumo escuro e torrado, de vinho tinto caro e de algo mais em que Irina não conseguiria pôr o dedo, e provavelmente não deveria. De Lawrence, apesar de bem-falante, ter um velho e batido sotaque norte-americano, igualzinho ao dela.
Do outro lado da balança estava a bondade mental. De certo modo, eram justamente as falhas de Lawrence que ela amava - ou era para revelar suas falhas que servia o amor dela. Irina jamais esqueceria a primeira vez em que havia notado que o cabelo de seu companheiro estava começando a rarear, nem a ternura penetrante que essa descoberta havia fomentado. Perversamente, ela o amara mais por ter menos cabelo, nem que fosse por ele precisar de um pouquinho mais de amor para compensar qualquer minúsculo acréscimo de beleza objetiva que tivesse perdido. Assim, nessa noite, foi justamente o fato de ele não ser alto - de ter sido, sim, meio chato no jantar, além de desconfiado e, por isso mesmo, menos agradável, para não falar em ríspido, preconceituoso e impaciente, com uma manchinha de mostarda na gola da capa, provavelmente do sanduíche de presunto do almoço -, o próprio fato de ele não fazer os empregados darem pulos, por ser uma grande celebridade, e de não falar com um sotaque cativante do sul de Londres, e de não exibir dedos primorosamente afilados, mas uns cotos curtos e grossos feito a salsicha do café da manhã, foi tudo isso que a fez pender para uma disposição mais terna. Irina cingiu-lhe a cintura com os braços. O abraço com que Lawrence retribuiu foi ferroz."


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Lionel Shriver
que, no segundo livro que escreveu, O mundo pós-aniversário, já conquista lugar na minha lista de preferidos
porque só ela consegue brincar com as intrincações da psicologia dessa maneira.


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