segunda-feira, 20 de julho de 2009

a joaninha

"Ao contrário, não se deve de jeito nenhum esquecer aquilo. Não se devem esquecer os velhos de corpos estragados, os velhos que estão pertinho de uma morte em que os jovens não querem pensar (por isso confiam ao asilo o cuidado de levar seus parentes, sem escândalos nem aborrecimentos), a inexistente alegria dessas derradeiras horas que deveriam ser aproveitadas a fundo e que são padecidas no tédio, na amargura e na repetição. Não se deve esquecer que o corpo definha, que os amigos morrem, que todos nos esquecem, que o fim é solidão. Esquecer muito menos que esses velhos foram jovens, que o tempo de uma vida é irrisório, que um dia temos vinte anos e, no dia seguinte, oitenta. [...] entendi muito cedo que uma vida se passa num tempinho à-toa, olhando para os adultos ao meu redor, tão apressados, tão estressados por causa do prazo de vencimento, tão ávidos de agora para não pensarem no amanhã... Mas, se tememos o amanhã, é porque não sabemos construir o presente e, quando não sabemos construir o presente, contamos que amanhã saberemos e nos ferramos, porque amanhã acaba sempre por se tornar hoje, não é mesmo?
Portanto, não devemos de jeito nenhum esquecer aquilo. É preciso viver com essa certeza de que envelheceremos e não será bonito, nem bom, nem alegre. E pensar que é agora que importa: construir agora, alguma coisa, a qualquer preço, com todas as nossas forças. [...] Escalar passo a passo nosso próprio Everest e fazê-lo de tal modo que cada passo seja um pouco de eternidade.
O futuro serve pra isto: para construir o presente com verdadeiros projetos de pessoas vivas."

Muriel Barbery, em A elegância do Ouriço




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quem me conhece, sabe que a morte é sempre um dos meus temas preferidos de leitura. não sei porque me 'fascina' tanto. esse livro foi um de pensar bastante sobre isso e sobre outras tantas coisas. e esse trecho ai, especialmente, foi o que mais me marcou. Porque é um clichê, e como todos os clichês, confortam, mas também são frustrantes e irritantes.
E o clichê de viver a vida agora, viver o momento, é lindo, não?
Mas quem é que realmente o segue?
Temos tanta coisa acontecendo, sempre. Temos o trabalho, alguns tem faculdade, tem os problemas de família, tem a saúde que nunca é 100%, tem a preguiça de todo dia, tem o esforço monumental de ir pra academia, tem os amigos que exigem a sua presença, tem os compromissos sociais muitas vezes indesejados. Tem coisas boas, mas muitas coisas ruins acontecendo, e a gente acaba 'esquecendo' de viver, realmente, o momento. Esquece de parar, de respirar, de saborear o que se come, de refletir, de sorrir.
Porque é assim a vida, porque nos é exigido. E porque, por mais que seja assim, e isso não seja o ideal, ainda acho que tudo se arranja pra melhor. Os momentos que são ruins, ou os que são livres de maiores emoções, servem para podermos valorizar as coisas boas. As risadas intermináveis com as amigas, um sorvete, um raio de sol numa caminhada no parque, a sensação de completar uma corrida, 300 gramas menos na balança, uma fruta bem gostosa, um abraço de uma criança, um encontro com um estranho, um bom livro começado, uma roupa nova, uma unha bem feita.
A lista poderia seguir adiante.

Mas dai, às vezes, tudo isso perde o sentido. E a vida se torna simples e puramente uma coisa estúpida, sem razão de ser. E isso me deixa braba. E triste. E carente.
Então, se essa semana, você me ver e eu estiver meio assim, não estranhe. A vida anda cinza e sem sentido. Por uma série de motivos, e um motivo em especial.



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Ela era uma menininha bonitinha. Fofinha. Cute, em inglês, é a palavra mais apropriada. Vinha sempre pra aula com uma bolsa daquelas de cachorrinho da Rafitthy, e isso me impressionava bastante. Não sabia onde colocá-la. Porque por trás da aparência de menininha bonitinha, também parecia haver uma adolescente patricinha. E, para mim, isso era tão conflitante. Eu ficava sem ação. Não sabia como deveria tratá-la. Queria tratá-la como a menininha, mas achava que não era isso que ela esperava de mim. Acabamos tendo alguns problemas por causa disso. Eu, na minha eterna ilusão e ingenuidade, nem percebi que os problemas existiam. Me surpreendi quando eles me foram relatados. Tentei melhorar, mas aquela altura, o encanto já tinha se quebrado. Me tornei defensiva, muitas vezes. Relapsa em outras, talvez. Tentei fazer o melhor, dentro das minhas limitações. E acho que, no fim, não foi tão ruim assim.
Ela nunca conseguia acertar o have. Sempre escrevia heve. Faz sentido, é a pronúncia. Fazíamos brincadeiras sobre isso, mas por vezes realmente me incomodava. É frustração de professora, sempre pensamos onde foi que erramos, porque não conseguimos transmitir uma informação tão simples.
Lá pela metade do semestre, aprendemos os insetos. E, de repente, a menininha se apaixonou pelas joaninhas. Veio o verbo to be, e toda aula, eu tinha que ouvir a mesma frase "I am a ladybug. I love ladybug." Mais uma vez, me incomodou um pouco. Porque faltava um plural ali. E porque não faz sentido você ser uma joaninha. Deixei passar, não sei porque. Nenhuma vez critiquei, nenhuma vez corrigi. Com o tempo, passei a esperar aquela frase.

Mas o tempo quis que a frase não se repetisse. Nunca mais. O tempo é cruel, a vida é cruel. E assim, uma meninha bonitinha se vai. Uma joaninha a mais voando por aí.
E, nesses momentos, me vejo forçada a abandonar todo o meu ceticismo, e só espero que exista realmente algum tipo de compensação depois da morte. Porque eu quero, realmente, acreditar que a menininha se transformou em uma joaninha, e está feliz a voar por ai. Porque eu quero acreditar que as nossas diferenças foram esquecidas. Porque eu quero acreditar que ela vai ver que eu colei um adesivo de joaninha no último boletim dela, mesmo sabendo que ela provavelmente nunca mais ia vê-lo. Porque eu quero acreditar que ela sabe que, no fundo, eu adorava daquela inocência que ela passava ao dizer "I am a ladybug". Nesse momento, ela era a menininha bonitinha. Ela era toda a beleza que existe no mundo, personificada nessa criança que acredita, realmente, ser uma joaninha.



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2 comentários:

F. disse...

e lá se vai a nossa ladybug.. :/

Cátia Andressa disse...

as joaninhas precisam se espalhar por aí, não? outras menininhas bonitas precisam se encantar por elas.

e nós não estamos aqui pra entender nada, só pra viver. não temos outra missão.

beijocas
saudades