domingo, 4 de outubro de 2009

preso, porém com asas

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"O ALFABETO

Gosto muito das letras do meu alfabeto. À noite, quando a escuridão é demais, e o único vestígio de vida é o pontinho vermelho da luzinha do televisor, vogais e consoantes dançam para mim uma farândola de Charles Trenet: “De Venise, ville exquise, j’ai gardé lê doux souvenir...” De mãos dadas, elas atravessam o quarto, giram em torno da cama, percorrem a janela, serpeiam sobre a parede, vão até a porta e saem para dar uma volta.

E S A R I N T U L O M D P C F B V H G J Q Z Y X K W

A aparente desordem desse alegre desfile não é fruto do acaso, mas de cálculos inteligentes. Mais que um alfabeto, é uma hit-parade em que cada letra é classificada em função de sua freqüência na língua francesa. Assim, o E vai caracolando na frente, e o W enganchado atrás para não ser largado pelo pelotão. O B bronqueia porque ficou perto do V, com o qual é sempre confundido. O orgulhoso J se espanta por estar tão longe, ele que começa tantas frases ([2]). Envergonhado porque o H não hesitou em lhe roubar o lugar, o gordo G vai grunhindo de raiva, e, o tempo todo no “tu lá tu cá”, o T e o U saboreiam o prazer de não terem sido separados. Toda essa reclassificação tem um porquê: facilitar a tarefa de todos os que quiserem tentar comunicar-se diretamente comigo.

O sistema é bem rudimentar. Meu interlocutor desfia diante de mim o alfabeto versão ESA... até que, com uma piscada, eu o detenha na letra que é preciso anotar. Aí recomeça a mesma manobra para as letras seguintes e, não havendo erro, depressinha conseguimos uma palavra inteira, depois segmentos de frases mais ou menos inteligíveis. Essa é a teoria, as instruções de uso, a nota explicativa. Mas há a prática, a irreflexão de uns e o bom senso de outros. Nem todos agem da mesma maneira diante do código, como também se chama esse método de tradução de meus pensamentos. Quem costuma fazer palavras cruzadas e jogar mexe-mexe ganha disparado. As garotas se saem melhor que os garotos. De tanto praticar, algumas conhecem o jogo de cor e nem usam o sacrossanto caderno, metade memento, para lembrar a ordem das letras, metade bloco de notas, onde são registradas todas as minhas frases, como oráculos de pitonisa.

Aliás, eu me pergunto a que conclusões chegarão os etnólogos do ano três mil, se por acaso folhearem esses cadernos onde se encontram, de cambulhada, numa mesma página, frases como: “A físio está grávida”, “Principalmente nas pernas”, “É Arthur Rimbaud”, e “A França jogou mal pra burro”. Tudo isso entremeado de patacoadas incompreensíveis, palavras mal compostas, letras perdidas e sílabas desarrimadas.

Os emotivos são os que se perdem mais depressa. Com a voz em surdina, adivinham o alfabeto a mil por hora, anotam algumas letras a esmo e, diante do resultado sem pé nem cabeça, exclamam com o maior descaro: “Sou uma nulidade!” Afinal de contas, até que é repousante, pois eles acabam assumindo toda a conversa, fazendo perguntas e dando respostas sem que eu precise ficar instigando. Tenho mais medo dos evasivos. Se pergunto: “Como vai?”, respondem “Bem”, e no ato já me passam a jogada. Com esses, o alfabeto vira tiro de barragem, e é preciso ter duas ou três perguntas prontas de antemão para não soçobrar. Os pés-de-boi é que nunca se enganam. Anotam todas as letras, escrupulosamente, e nunca procuram penetrar o mistério de uma frase antes que ela esteja terminada. Nem pensar em completar uma palavra sequer. Com o pescoço na forca eles não acrescentarão por iniciativa própria o “melo” ao “cogu”, o “mico” que segue o “atô” e o “nável” sem o qual não há como acabar o “intermi” nem o “abomi”. Essa lentidão torna o processo enfadonho, mas pelo menos são evitados os contra-sensos em que se atolam os impulsivos quando deixam de confirmar suas intuições. No entanto, entendi a poesia desses trocadilhos no dia em que, como eu pedisse meus óculos (lunettes), alguém me perguntou com grande elegância o que eu queria fazer com a lua (lune)..."


O escafandro e a borboleta
Jean-Dominique Bauby




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na verdade, acho que já tinha ouvido falar desse livro na época do lançamento dele. mas, como muitos outros que eu pensei "putz, deve ser tri bom", ficou esquecido em algum canto da memória. (aliás, deve ser interessante olha a imensa lista de livros que está perdida na minha menória, são tantos que eu gosto, tantos que eu gostaria de ter, de ler, de comprar...)



agora, esse ano, com o lançamento do filme homônimo, o filme voltou às patreleiras virtuais (é uma pena que eu não disponha de uma livraria real decente para tocar nos livros) e ficou me perseguindo.
o título, obviamente, me chamou atenção, como tudo que contêm esses seres voadores. juntar uma borboleta a um escafandro, então, é pelo menos instigante. quando li o resuminho, já estava apaixonada, sem nem mesmo pegar o livro na mão.
iniciamos uma paquera. mas foi uma paquera longa, demorada, paciente (e as melhores não são assim?). cheguei a comprá-lo para uma amiga e avisar "quero emprestado".
mas a paquera continuou, continuou.

semana passada, finalmente, tomei coragem e convidei o livro para sair. estava muito barato, não pude resistir aos R$ 9,90 do submarino. e, assim que ele chegou, dei um beijo nele e não larguei mais.

a paixão se concretizou.

é lindo, é poético, e é uma lição de vida, sem ser clichê. é intelectual, mas de uma maneira simples. é bem-humorado e espirituoso, porém dramático.
é plural.


e quem não se apaixona por plural?


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Um comentário:

Anônimo disse...

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